Bernardo Almeida, o Poeta

*Nonato Reisbernardo almeida

Conheci o escritor e poeta Bernardo Coelho de Almeida em planos e tempos distintos. O primeiro, através das ondas médias do velho rádio transglobe. Final dos anos 60. Eu, menino ainda ensaiando os primeiros passos na escola, não perdia uma única edição do “Difusora Opina”, espécie de editorial, em forma de crônica, escrito por ele e levado ao ar pela Rádio Difusora, ao meio-dia. Jamais vi um texto tão bem feito. As palavras, de tão fortes e agudas, pareciam martelar o cérebro, chamando a atenção dos ouvintes para um fato de interesse púbico.   Cresci assim fascinado pelo poeta. Já adulto, prestei vestibular para a UFMA, e o tema da redação seria escolhido entre três romances. Os dois primeiro, não lembro mais quais eram.   Aluno indisciplinado que sempre fui, deixei para ler os livros às vésperas da prova. Minha ideia era seguir a estratégia de Adolf Hitler, que costumava ler apenas as páginas iniciais e finais dos  livros. Quando peguei O Bequimão e corri os olhos sobre o capítulo inicial, senti-me tomado de súbito interesse e não consegui mais me desligar do livro.   Já era noite alta quando encerrei a leitura. Fiquei, especialmente, impressionando com o capítulo em que o autor descreve a última noite, na cela, do protagonista do romance, antes de ser conduzido à forca. De tão forte a narrativa, você se vê na pele do personagem e chega   a sentir toda a angústia que lhe devora a alma naqueles instantes finais de vida. A imagem da lua, descendo o horizonte, madrugada alta, vista das grades da prisão, é aterradora. Ao vencer a última página, fiquei com a sensação da corda apertando-me o pescoço.   No dia seguinte, ao prestar os exames, deparei-me com “O Bequimão” na redação. Pediam-nos que descrevêssemos, com o nosso próprio olhar, a noite de véspera da morte de Manuel Beckman. Sorri baixinho e dei graças ao Pai celestial. Meu passaporte para a universidade estava ali diante de mim. Bastava-me carimbá-lo.   O tempo passou e o encontrei, pessoalmente, no Jornal de Hoje. Eu, como chefe de reportagem; ele, como editorialista. Chegava pontualmente às três da tarde, vestido em calça social creme   ou branca e camisas em mangas compridas, também em cores claras ou neutras. Foi o sujeito mais generoso que conheci. Generoso na maneira de lidar com as pessoas. Era de uma placidez comovente. O Poeta, como o chamávamos, jamais alterava a voz, mesmo quando contrariado.   Sem dúvida um gentleman, com aquela sua voz grave, porém mansa e pausada. Que eu me lembre, apenas uma vez perdeu a compostura dentro do Jornal do Hoje, e ainda assim com senso de humor. Foi um dia em que, Arimatéia Ataíde, então diretor de redação, exortou, pela enésima vez, a sua passagem em O Globo, como redator, para destacar a sua   figura de jornalista brilhante, ao que o Poeta refutou naquele seu vozeirão de locutor de rádio: “Que redator de O Globo coisa nenhuma, Arimatéia! Lá tu eras foca (no jargão jornalístico este é o nome que se dá para aquele que está iniciando na profissão). O riso foi geral.   Trabalhar com o Poeta era um luxo. Djalma Rodrigues, um dos textos mais brilhantes do JH, não se conteve e comentou com ele o privilégio que era tê-lo conosco no ambiente de trabalho, uma figura luminosa, de talento singular e tantas histórias. Bernardo, que adorava relembrar   os seus tempos de boêmio inveterado, deu um leve sorriso e, puxando-o para um canto da sala, falou-lhe ao ouvido: “este é um assunto para tratarmos em uma mesa de bar”. Convite aceito, os   dois vararam a noite, bebendo e revivendo as suas incursões pelos bares e cabarés da cidade.   Eu, às vezes, sentia vontade de me beliscar para saber se aquela convivência com o mito era de fato real ou imaginária. Não sei por que, ele me chamava de Mister Rex. Adentrava a redação e seguia direto para a minha mesa, que ficava ao lado da porta que dava acesso à sala restrita do diretor. Dava boa tarde e fazia algum comentário sobre a crônica que eu publicara naquele dia,como a dizer, “olha, eu leio o que você escreve”, o que me enchia de orgulho.   Um dia, final de tarde, o Poeta não aparecera na redação. De repente toca o telefone. Era ele.   Tinha um pedido a fazer para o Djalma, urgente, inadiável. “Djalma, eu estou aqui em uma roda de amigos, a conversa está boa e eu não vou poder ir ao jornal. Gostaria que você escrevesse a minha crônica”. Não havia como negar um pedido daquele. “Reis, eu senti um frio na barriga”, disse-me Djalma, muito tempo depois.   Concluída a missão, Djalma pegou o telefone e leu o texto para o Poeta, que o aprovou sem qualquer correção. No dia seguinte, ele chamou o discípulo a um canto da sala e falou-lhe em tom de confidência. “Djalma, não espalha, mas o (José) Burnett (na época deputado federal e espécie de conselheiro do senador João Castelo, dono do jornal) me ligou para me dar os parabéns pelo texto. Disse que foi o melhor artigo que escrevi”. Djalma subiu às nuvens.   Em 1992 teve a oportunidade de ganhar projeção internacional como autor. O Rio de Janeiro sediou a Eco-92, a conferencia mundial do meio ambiente. Presente ao evento, ele foi apresentado a empresários alemãs, que se diziam fascinados pelo romance O Bequimão,especialmente em face das origens germânicas do personagem-título. A idéia seria transformar o livro em minissérie, a ser exibida pela Rede Globo. As negociações avançaram e o roteirista   chegou a ser escolhido: o maranhense José Louzeiro. O projeto acabou abortado pelos problemas de saúde que o Poeta enfrentaria nos anos seguintes.   Primeiro um aneurisma, que o levou à mesa de operação e exigiu um longo período de reabilitação. Depois, já refeito, vieram outras complicações. Internou-se em São Paulo e passou por outra cirurgia. Ainda no hospital, em plena recuperação, já fazia planos para quando saísse dali. O jornalista Wady Hadad Neto acompanhou seus últimos dias de vida. Ia visitá-lo todos os dias. Até que numa manhã a casa caiu. Teve uma crise repentina e resolveu partir, abrindo nas  letras um vazio jamais preenchido. Era o ano de l996, 4 de agosto.   Na crônica “Tarde Demais”, que integra o livro “Éramos felizes e não sabíamos”, o Poeta destaca o valor intangível dos livros e relembra a tragédia provocada por uma chuva diluviana que solapou a sua biblioteca de dois mil volumes. O tom é de melancolia. “Agora, tarde demais, amargo a tristeza de ser um escritor de poucos amigos, isto é, de poucos livros (…)”.   Tomada a frase ao pé da letra, livre da metáfora que a reveste, poder-se-ia dizer que Bernardo Coelho de Almeida foi um autor de pequena produção, porém os poucos livros que escreveu  bastaram para atestar a sua grandiosidade. O Bequimão é um romance extraordinário. Está no patamar das obras primas da literatura brasileira. A história é que ainda não o colocou no lugar que por direito lhe cabe. Um dia, quem sabe.

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