Paulo César do Vale Madeira*
No dia 1º de Novembro de 1478 o Papa Sisto IV emite uma bula autorizando o estabelecimento da inquisição na Espanha. Entre 1943 e 1945 o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade escreveu o livro “A Rosa do povo”. Em 10 de Dezembro de 1948 a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 05 de Outubro de 1988 foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil. Por fim, para o que aqui importa, no dia 30 de Dezembro de 2004 foi criado o Conselho Nacional de Justiça, através da Emenda Constitucional nº 45.
Divisar as conexões entre eventos históricos tão distantes, com obviedade ululante, seria próprio de um Conselheiro, não um dos nossos tempos, mas daquele que veio ao mundo pela pena do escritor português Eça de Queiroz, o Conselheiro Acácio. Sobre o grande conselheiro, temos que não queria elogios no epitáfio, mas não abria mão da designação solene. Disse ele: “Por minha vontade quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o meu nome — com a minha designação de conselheiro — a data do meu nascimento e a data do meu óbito. E com um tom demorado, de reflexão: — Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores: Orai por ele!”.
Deixemos, portanto, as conclusões acacianas para o nosso riso, ou para atualizações. O que importa aqui é falar de processo civilizatório e da necessidade permanente de concertar, harmonizar conflitos de ideias para que os éditos de fé permaneçam nos registros históricos, lembrando a longa e tortuosa jornada até nossos dias.
Os avanços civilizatórios, pelo menos sob o prisma ocidental, podem ser tratados a partir de alguns marcos, sendo aceita na academia a perspectiva geracional, proposta por Vasak, KAREL (1979), para quem os princípios da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), representariam as categorias de direito de primeira, segunda e terceira geração. Entre a bula papal de Sisto IV e a revolução francesa tivemos um intervalo de mais de três séculos. Quanto mais recuamos no tempo mais 1 Juiz de Direito Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília – UnB. percebemos que o processo civilizacional foi extremamente demorado e fruto de muitas lutas e sacrifícios. As gerações atuais não podem permitir qualquer retrocesso. E onde cabe o Conselho Nacional de Justiça nessa evolução histórica?
Para compreender o nosso Conselho e seus conselheiros é preciso fazer um recorte histórico bem menor, encravado entre o golpe militar de 1964 e a promulgação da Constituição Federal de 1988, isso porque nos períodos constitucionais anteriores chegamos a ter Tribunal de exceção, como era o Tribunal de Segurança Nacional, no período do Estado novo, e sob a égide da Constituição Federal de 1967 vigeram os Atos Institucionais que, como explica Freitas, VLADIMIR (2012): “…de forma indireta, cerceavam liberdades democráticas. Indireta, porque aos magistrados não era dito que fizessem ou deixassem de fazer isto ou aquilo, mas havia o receio de que pudessem ser cassados por um Ato Institucional, cuja apreciação era vedada ao Poder Judiciário.” (O Poder Judiciário no Regime Militar).
Com a Constituição Federal de 1988, que incorporou princípios estampados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, passamos a ter, efetivamente, a mais ampla autonomia e independência do Poder Judiciário. Não cabendo mais falar em Atos Institucionais cerceadores, surgiu a necessidade de algum tipo de controle, para garantir transparência e evitar abusos dentro de um Poder autônomo. Alguém precisava vigiar o julgador.
A ideia da criação do Conselho Nacional de Justiça, seja por puro misoneísmo de alguns, ou por desconfianças fundadas de outros, deixou a Magistratura nacional em alerta. Houve muitas resistências nas entidades de classe, com o receio de que, de algum modo, o Conselho Nacional de Justiça, ao invés de colaborar para o aperfeiçoamento do Poder Judiciário, acabasse ferindo a autonomia tão duramente conquistada.
Os primeiros movimentos que o CNJ fez na conexão direta com a sociedade, através das Audiências Públicas, a partir de 2010, pareceram dar razão aos que desconfiavam do novo Órgão. A magistratura foi assombrada por alguns eventos deprimentes, onde a chamada “democratização da Justiça” consistia no direito de qualquer cidadão de falar, em alto e bom som, para uma plateia sedenta, tudo que considerasse “não estar correto no funcionamento do Judiciário”, o que abria margem para ofensas morais contra Juízes, sem qualquer direito de defesa. Com o correr do tempo o CNJ foi calibrando as atuações, percebendo que a espetacularização não é o melhor caminho para ouvir e levar em conta as legítimas reclamações dos cidadãos. Evoluímos e o CNJ passou a ser visto como um Órgão relevante e respeitável. Deu grandes contribuições para conter abusos em Tribunais inferiores, encampou políticas públicas relevantes, como a Agenda 2030 da ONU, enfim, tudo indicava que tínhamos chegado a um nível em que não cabia mais a desconfiança. Chegamos em 2024 e a desconfiança voltou com a mesma força dos momentos iniciais. A banalização dos afastamentos cautelares de magistrados, as exigências por produção crescente de números de atos, quase como peças em série, sem averiguação adequada das condições de trabalho, tudo isso tem impactado negativamente num dos pilares da democracia, o Poder Judiciário.
Observando o que ocorre atualmente com o chamado controle do Judiciário, talvez seja preciso reler o conselheiro Acácio, que parecia pacóvio ao dizer o óbvio. Quando alguém não percebe uma obviedade, talvez seja mesmo preciso dizer. Alguém tem dúvida de que a presunção de inocência contempla os juízes? Alguém tem dúvida de que os requisitos para a concessão de cautelares contra um réu em processo criminal devem também ser aplicados se o réu for um juiz?
Atos recentes do nosso Conselho Nacional, com cinco afastamentos monocráticos sumários em um só dia (quatro do Paraná e um do Amapá), parecem indicar que sim. Em relação ao Juiz, parece que a presunção é invertida: todo Juiz que sofre reclamação é culpado, até prova em contrário. O que é isso? É preciso corrigir a rota. Como disse o Ministro Barroso, Presidente do Conselho, chega a ser perversidade.
Um afastamento sumário de uma magistrado, em tempos de redes sociais e seus tribunais paralelos, pode gerar danos irreversíveis para o indivíduo. Além do abalo moral que pode gerar, traz de arrasto um dano material difícil de contornar. Gastos com passagens aéreas, hospedagem, contratação de um bom escritório de advocacia em Brasília, para uma única sustentação oral no Conselho, podem comprometer facilmente dois meses de subsídios de quem tem que viver exclusivamente do que recebe na Magistratura.
O respeito que a instituição Conselho Nacional de Justiça alcançou não pode ter retrocesso. Os atos do CNJ devem seguir na linha do aperfeiçoamento do Judiciário. A imposição de políticas pretensamente moralizadoras pelo império do medo não cabe no atual estágio civilizatório. Não podemos conceber que hoje os magistrados digam, atualizando o verso do Chico: “acorda amor, que eu tive um pesadelo agora, sonhei que tinha um conselheiro lá fora, batendo no portão, que aflição”. Definitivamente, não! É preciso concertar para não precisarmos consertar um erro histórico de enfraquecer o Judiciário, ajudando a minar a democracia.
Todos no Judiciário prometem cumprir a Constituição Federal e as leis do País. Talvez caibam mais dois juramentos: prometer ler poesias e prometer não ter medo de decidir. Um julgador que não lê poesias talvez não alcance a dimensão humana que envolve um processo. Um julgador medroso empodera os abusadores.
Diante de cenários ruins não cabe desespero, nem vitimismo e nem choro. Fico com um trecho de Drummond, que deu a pista, no poema “consolo na praia”, extraído do livro “A Rosa do povo”:
“A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho”
* Paulo César do Vale Madeira é natural de São Luís do Maranhão. Juiz titular da 6ª Vara Cível e de Fazenda Pública de Macapá (AP). Membro do Pleno do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília – UnB.